O incidente de deslocamento de competência foi inserido na Constituição pela Emenda Constitucional nº 45/04, que incluiu o art. 5º no art. 109 (que trata da competência da Justiça Federal), com a seguinte redação:
Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal.
Diante da ausência de regramento específico disciplinando o processamento do Incidente de Deslocamento de Competência, o Superior Tribunal de Justiça vem delineando-o através dos julgados. Definiu-se que para que o pedido possa ser deferido devem estar presentes 3 pressupostos:
- a existência de grave violação a direitos humanos;
- o risco de responsabilização internacional decorrente do descumprimento de obrigações jurídicas assumidas em tratados internacionais; e
- a incapacidade das instâncias e autoridades locais em oferecer respostas efetivas.
Aquele tribunal também decidiu que não caberia pedido de assistência - os processos examinados tem natureza penal e Código de Processo Penal atribui caráter restritivo a esse tipo de legitimado na persecução criminal.
Por outro lado, foi aceita a admissão das organizações da sociedade civil na condição de amicus curiae, por sua atuação nos casos que envolvem direitos humanos, inclusive como agentes provocadores dos organismos responsáveis por garantí-los.
O STJ também se adiantou e afirmou que, em caso de eventual envolvimento de membro do Ministério Público ou do Poder Judiciário, isso não impedirá o deslocamento de competência e implicará em hipótese de aplicação concertada do §5º do artigo 109 da Constituição Federal e do artigo 96, III, do texto constitucional – seria assegurando aos eventuais acusados o julgamento em órgão colegiado (Tribunal Regional Federal).
Por fim, quando do deslocamento, a jurisdição será a do juiz federal que tiver a competência para o lugar onde houve o fato.
Desde sua criação, em apenas duas ocasiões foi requerido o deslocamento da competência: nos casos “Dorothy Stang” e “Manoel de Mattos”.
Caso “Dorothy Stang”
Na primeira vez - caso “Dorothy Stang” -, o STJ indeferiu o pedido porque as autoridades estaduais demonstraram estar empenhadas na apuração dos fatos que resultaram na morte da missionária norte-americana, com o objetivo de punir os responsáveis, refletindo a intenção de o Estado do Pará dar resposta eficiente à violação dos direitos humanos, o que afasta a necessidade de deslocamento da competência originária para a Justiça Federal.
Conheça a ementa do acórdão do processo:
CONSTITUCIONAL. PENAL E PROCESSUAL PENAL. HOMICÍDIO DOLOSO QUALIFICADO. (VÍTIMA IRMÃ DOROTHY STANG). CRIME PRATICADO COM GRAVE VIOLAÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS. INCIDENTE DE DESLOCAMENTO DE COMPETÊNCIA – IDC. INÉPCIA DA PEÇA INAUGURAL. NORMA CONSTITUCIONAL DE EFICÁCIA CONTIDA. PRELIMINARES REJEITADAS. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL E À AUTONOMIA DA UNIDADE DA FEDERAÇÃO. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. RISCO DE DESCUMPRIMENTO DE TRATADO INTERNACIONAL FIRMADO PELO BRASIL SOBRE A MATÉRIA NÃO CONFIGURADO NA HIPÓTESE. INDEFERIMENTO DO PEDIDO.
Detalhe da foto da Agência Brasil |
1. Todo homicídio doloso, independentemente da condição pessoal da vítima e/ou da repercussão do fato no cenário nacional ou internacional, representa grave violação ao maior e mais importante de todos os direitos do ser humano, que é o direito à vida, previsto no art. 4º, nº 1, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário por força do Decreto nº 678, de 6/11/1992, razão por que não há falar em inépcia da peça inaugural.
2. Dada a amplitude e a magnitude da expressão “direitos humanos”, é verossímil que o constituinte derivado tenha optado por não definir o rol dos crimes que passariam para a competência da Justiça Federal, sob pena de restringir os casos de incidência do dispositivo (CF, art. 109, § 5º), afastando-o de sua finalidade precípua, que é assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais firmados pelo Brasil sobre a matéria, examinando-se cada situação de fato, suas circunstâncias e peculiaridades detidamente, motivo pelo qual não há falar em norma de eficácia limitada. Ademais, não é próprio de texto constitucional tais definições.
3. Aparente incompatibilidade do IDC, criado pela Emenda Constitucional nº 45/2004, com qualquer outro princípio constitucional ou com a sistemática processual em vigor deve ser resolvida aplicando-se os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.
4. Na espécie, as autoridades estaduais encontram-se empenhadas na apuração dos fatos que resultaram na morte da missionária norte-americana Dorothy Stang, com o objetivo de punir os responsáveis, refletindo a intenção de o Estado do Pará dar resposta eficiente à violação do maior e mais importante dos direitos humanos, o que afasta a necessidade de deslocamento da competência originária para a Justiça Federal, de forma subsidiária, sob pena, inclusive, de dificultar o andamento do processo criminal e atrasar o seu desfecho, utilizando-se o instrumento criado pela aludida norma em desfavor de seu fim, que é combater a impunidade dos crimes praticados com grave violação de direitos humanos.
5. O deslocamento de competência – em que a existência de crime praticado com grave violação aos direitos humanos é pressuposto de admissibilidade do pedido – deve atender ao princípio da proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito), compreendido na demonstração concreta de risco de descumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais firmados pelo Brasil, resultante da inércia, negligência, falta de vontade política ou de condições reais do Estado-membro, por suas instituições, em proceder à devida persecução penal. No caso, não há a cumulatividade de tais requisitos, a justificar que se acolha o incidente.
6. Pedido indeferido, sem prejuízo do disposto no art. 1º, inc. III, da Lei nº 10.446, de 8/5/2002.
(IDC . 1/PA, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 08/06/2005, DJ 10/10/2005, p. 217)
Caso “Manoel de Mattos”
O segundo caso, no qual o pedido de deslocamento foi deferido, envolvia o assassinato do advogado e vereador pernambucano MANOEL BEZERRA DE MATTOS NETO, ocorrido em 24/01/2009, no Município de Pitimbu/PB. Antes do crime, a vítima vinha sofrendo diversas ameaças e vários atentados, em decorrência provável de sua persistente e conhecida atuação contra grupos de extermínio que agiriam impunes há mais de uma década na divisa dos Estados da Paraíba e de Pernambuco, entre os Municípios de Pedras de Fogo e Itambé, com suposta participação de particulares e autoridades estaduais.
Na apuração, noticiou-se a existência de cerca de duzentos homicídios, com características de execução sumária por ação desses grupos, ocorridos ao longo dos últimos dez anos.
Conheça o acórdão:
INCIDENTE DE DESLOCAMENTO DE COMPETÊNCIA. JUSTIÇAS ESTADUAIS DOS ESTADOS DA PARAÍBA E DE PERNAMBUCO. HOMICÍDIO DE VEREADOR, NOTÓRIO DEFENSOR DOS DIREITOS HUMANOS, AUTOR DE DIVERSAS DENÚNCIAS CONTRA A ATUAÇÃO DE GRUPOS DE EXTERMÍNIO NA FRONTEIRA DOS DOIS ESTADOS. AMEAÇAS, ATENTADOS E ASSASSINATOS CONTRA TESTEMUNHAS E DENUNCIANTES. ATENDIDOS OS PRESSUPOSTOS CONSTITUCIONAIS PARA A EXCEPCIONAL MEDIDA.
Detalhe da foto da Agência Brasil 1. A teor do § 5.º do art. 109 da Constituição Federal, introduzido pela Emenda Constitucional n.º 45/2004, o incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal fundamenta-se, essencialmente, em três pressupostos: a existência de grave violação a direitos humanos; o risco de responsabilização internacional decorrente do descumprimento de obrigações jurídicas assumidas em tratados internacionais; e a incapacidade das instâncias e autoridades locais em oferecer respostas efetivas.2. Fatos que motivaram o pedido de deslocamento deduzido pelo Procurador-Geral da República: o advogado e vereador pernambucano MANOEL BEZERRA DE MATTOS NETO foi assassinado em 24/01/2009, no Município de Pitimbu/PB, depois de sofrer diversas ameaças e vários atentados, em decorrência, ao que tudo leva a crer, de sua persistente e conhecida atuação contra grupos de extermínio que agem impunes há mais de uma década na divisa dos Estados da Paraíba e de Pernambuco, entre os Municípios de Pedras de Fogo e Itambé.3. A existência de grave violação a direitos humanos, primeiro pressuposto, está sobejamente demonstrado: esse tipo de assassinato, pelas circunstâncias e motivação até aqui reveladas, sem dúvida, expõe uma lesão que extrapola os limites de um crime de homicídio ordinário, na medida em que fere, além do precioso bem da vida, a própria base do Estado, que é desafiado por grupos de criminosos que chamam para si as prerrogativas exclusivas dos órgãos e entes públicos, abalando sobremaneira a ordem social.4. O risco de responsabilização internacional pelo descumprimento de obrigações derivadas de tratados internacionais aos quais o Brasil anuiu (dentre eles, vale destacar, a Convenção Americana de Direitos Humanos, mais conhecido como "Pacto de San Jose da Costa Rica") é bastante considerável, mormente pelo fato de já ter havido pronunciamentos da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, com expressa recomendação ao Brasil para adoção de medidas cautelares de proteção a pessoas ameaçadas pelo tão propalado grupo de extermínio atuante na divisa dos Estados da Paraíba e Pernambuco, as quais, no entanto, ou deixaram de ser cumpridas ou não foram efetivas. Além do homicídio de MANOEL MATTOS, outras três testemunhas da CPI da Câmara dos Deputados foram mortos, dentre eles LUIZ TOMÉ DA SILVA FILHO, ex-pistoleiro, que decidiu denunciar e testemunhar contra os outros delinquentes. Também FLÁVIO MANOEL DA SILVA, testemunha da CPI da Pistolagem e do Narcotráfico da Assembleia Legislativa do Estado da Paraíba, foi assassinado a tiros em Pedra de Fogo, Paraíba, quatro dias após ter prestado depoimento à Relatora Especial da ONU sobre Execuções Sumárias, Arbitrárias ou Extrajudiciais. E, mais recentemente, uma das testemunhas do caso Manoel Mattos, o Maximiano Rodrigues Alves, sofreu um atentado a bala no município de Itambé, Pernambuco, e escapou por pouco. Há conhecidas ameaças de morte contra Promotores e Juízes do Estado da Paraíba, que exercem suas funções no local do crime, bem assim contra a família da vítima Manoel Mattos e contra dois Deputados Federais.5. É notória a incapacidade das instâncias e autoridades locais em oferecer respostas efetivas, reconhecida a limitação e precariedade dos meios por elas próprias. Há quase um pronunciamento uníssono em favor do deslocamento da competência para a Justiça Federal, dentre eles, com especial relevo: o Ministro da Justiça; o Governador do Estado da Paraíba; o Governador de Pernambuco; a Secretaria Executiva de Justiça de Direitos Humanos; a Ordem dos Advogados do Brasil; a Procuradoria-Geral de Justiça do Ministério Público do Estado da Paraíba.6. As circunstâncias apontam para a necessidade de ações estatais firmes e eficientes, as quais, por muito tempo, as autoridades locais não foram capazes de adotar, até porque a zona limítrofe potencializa as dificuldades de coordenação entre os órgãos dos dois Estados. Mostra-se, portanto, oportuno e conveniente a imediata entrega das investigações e do processamento da ação penal em tela aos órgãos federais.7. Pedido ministerial parcialmente acolhido para deferir o deslocamento de competência para a Justiça Federal no Estado da Paraíba da ação penal n.º 022.2009.000.127-8, a ser distribuída para o Juízo Federal Criminal com jurisdição no local do fato principal; bem como da investigação de fatos diretamente relacionados ao crime em tela. Outras medidas determinadas, nos termos do voto da Relatora.(IDC . 2/DF, Rel. Ministra LAURITA VAZ, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 27/10/2010, DJe 22/11/2010)
Responsabilidade por violação de direitos humanos: Brasil firma acordo na CIDH – Caso Lapoente
O Brasil firmou Acordo de Solução Amistosa para o encerramento do Caso nº 12.674, em tramitação perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH/OEA), em dezembro de 2011/janeiro de 2012.
Esse caso envolve a morte de Márcio Lapoente da Silveira, cadete da Acadenia Militar das Agulhas Negras (Exército Brasileiro), durante curso de formação de oficiais.
Em 9/10/1990, Lapoente faleceu depois de passar mal durante uma corrida no curso. Num primeiro atendimento, no Hospital Escolar da Aman, ainda em vida, ele foi diagnosticado com meningite. Depois foi removido para hospital, onde deu entrada morto. A autópsia revelou que a causa do óbito foi choque térmico seguido de infarto agudo do miocárdio durante a realização do exercício.
Em 2008, a CIDH acatou petição dos pais de Lapoente pedindo providências, pois estes avaliam que o filho morreu devido a tortura.
Foi reconhecida a responsabilidade pela violação dos direitos à vida e à segurança da Pessoa e à proteção e garatias juridiciais em relação à demora excessiva na tramitação de ação judicial.
O Brasil se comprometeu a realizar estudos para aprimorar as Justiças Militar e Comum, a ampliar o ensino de direitos humanos no currículo de formação militar, e a enviar relatórios semestrais à CIDH sobre o cumprimento do acordo.
Esse acordo foi questionado no Supremo Tribunal Federal, que arquivou o mandado de segurança manejado
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